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Por Rodrigo Fonseca
Número
53
Resumo:
O presente texto vem problematizar a indistinção
que se dá entre a imagem conceitual da
"realidade do virtual" em relação
à imagética gerada pela simulação
digital, rotulada como "realidade virtual".
A concepção do virtual, na condição
de velocidade absoluta, movimento imanente aos
ritmos criativos do tempo, portanto, ao ser diferenciada
da noção de virtual ligada aos
fluxos binários do virtual tecnológico,
poderá nos motivar a pensar aqui duas
questões que remetem a tal realidade contemporânea:
a prática da imaginação,
em si, criativa, experimental, e a prevalência
do imaginário, adaptável e apenas
recognitivo. A primeira nos convida a afirmar
a necessidade de experimentação
de uma "micro-ética", nos encontros
da internet: em vez da conformação
da subjetividade aos ritmos cadenciados pelos
simulacros digitais, propõe-se aqui uma
prática de composição do
Eu, como um "personagem do virtual",
imaginado para se exercitar uma liberdade despersonalizada,
pré-subjetiva, por modos de usar a internet
e de contagiar, por ações criativas,
novos afetos coletivos.
Há uma
antiga noção que, se pensada com
a devida cautela, poderá nos ajudar a
compreender, nos usos da internet e
no consumo de softwares, tais como videogames
e simuladores, certas implicações
entre a criatividade imaginativa e o controle
tecnocrático do imaginário: esta
será a idéia de "virtual".
Os insistentes jargões dos porta-vozes
publicitários da indústria da digitalização
não cessam de se desdobrar em rótulos,
revestidos de uma sonoridade sedutora, tais como:
“mercado virtual”, “banco virtual”,
“loja virtual”, “amizade virtual”
etc. Mas a razão primeira do equívoco
no uso do termo “virtual”, parece
ter começado quando a multimídia
o reivindicou, para seus fins mercadológicos.
Criou-se, em torno da palavra, uma atmosfera
imagética cintilante ou uma eufonia retórica,
de uma realidade midiática, cada vez mais
conveniente às demandas do controle tecnocrático
digital. “Realidade virtual” se tornou
assim uma palavra de ordem para o consumidor
dos produtos informáticos mas, freqüentemente,
empregada a contra-senso.
Para que as
situações coletivas de atividades,
de encontros, de cruzamentos e de criação
na internet sejam aqui pensadas, a partir da
questão do virtual, é necessário
que se considere, em primeiro lugar, que nossas
vidas andam em vários ritmos, muitos deles
nem sempre perceptíveis: é a nossa
existência “pré-subjetiva”.
Mas eis que tais ritmos passaram a ser, sorrateiramente,
cadenciados pela recente lógica das tecnologias
da simulação. É preciso,
diante disso, assumir que muitos de nossos insuspeitados
hábitos perceptivos, mnemônicos,
imaginais e de produção de sentido
são, com impassível freqüência,
urdidos pelas máquinas de gerenciamento
da informação. É para estes
grandes dispositivos da comunicação
que se manifestam pelos regimes de codificação
do sentido, a se impingirem sobre a nossa imaginação
e sobre o imaginário coletivo.
Voltemos, antes
de tudo, o olhar para como o pensamento filosófico
contemporâneo vem abordando a questão
do virtual. O mundo, nos é dado "fenomenalmente",
numa multitude infinita de coisas sensíveis.
Na realidade do presente vivido, essas "coisas"
percebidas encobrem-nos a sensação
do todo ilimitado, irrefreado, composto por dinamismos
irredutíveis. Mas eis que a evidência
contradiz, aparentemente, esta intuição,
pois vemos efetivamente coisas, distinguimo-nos
como uma coisa em relação a outras.
O real, porém, se move por meio de uma
força onipresente, una e múltipla
como um jogo de forças e de ondas de força,
acumulando-se num dado ponto quando afrouxam
noutro; um mar de forças agitadas por
tempestades, em perene mudança e em perene
refluxo. Gabriel Tarde, contemporâneo de
Bergson, assinalava que até mesmo os átomos,
última unidade elementar que se cria homogênea,
estável, se revela múltipla, cuja
diversidade interna executa movimentos de grande
imprevisibilidade. Nas palavras de Tarde: "Sob
a calma aparência que a percepção
nos dá, um turbilhão se diz, num
ritmo vibratório, algo infinitamente complicado."
(Tarde, 2003, p. 11) Como antecipara Gabriel
Tarde, a realidade linear e seqüencial da
nossa consciência tem como origem, entretanto,
uma singularidade prodigiosamente improvável,
uma coincidência impossível de movimentos
múltiplos, ao mesmo tempo distintos e
semelhantes: paradoxais1.
A simplicidade
da natureza que apreendemos sensorialmente é,
com efeito, o resultado de uma complexidade infinita,
e que, sob uma aparente uniformidade, se encontra
uma diversidade. Trata-se de uma agitação,
de uma realidade inquieta que subsiste/insiste
por trás da calma aparência do vivido,
uma intempestividade própria dos tempos
"invivíveis". O que nos parece
imóvel, na realidade, está prenhe,
repleta de movimentos incessantes, infinitos,
imanentes, ritmos continuamente dobrados uns
nos outros. Como nos diria Fernando Pessoa: "...a
sombra íntima de tudo" (Pessoa, 1998,
p. 259)2.
Mas afinal,
o que vem a ser o virtual? Como se deu o aparecimento
desta formidável imagem conceitual. O
conceito de virtual, em sua matriz filosófica
mais conhecida, possui uma imagem que lhe deu
o pensamento de Aristóteles. O filósofo
detém-se para explicar toda a dinâmica
vital como a passagem de potência - ou
virtude - ao ato, quer dizer, à realidade
sensível, e vice-versa. Deste modo, o
ponto de partida de seu conceito de virtual trata
então de relacionar, na realidade, três
elementos fundamentais: a potência, o ato
e, como mediador, o movimento.
O esquema do
virtual aristotélico começa por
distinguir, na gestação contínua
da realidade do universo, uma relação
dialógica entre o "real" e o
"possível". Sob esta rubrica
da tensão dialética, Aristóteles
instituiu uma equivalência entre atual
( ato ) = real; e virtual ( força ) =
irreal ou ilusório. Todo e qualquer movimento
do mundo trata-se, deste modo, de um jogo agonístico,
por meio do qual surge um par de conceitos opostos
que ele chama de "dynamis / energeia".
Aristóteles recorria então à
noção de virtual para justificar
esta ontológica oposição
vigente, entre "possibilidade" e "existência"3.
A lógica
do sistema aristotélico obedecia ao princípio
da "identidade", da recognição
e da não-contradição no
pensamento, cuja premissa dispunha que não
seria possível existir, ao mesmo tempo,
"A" e "não-A". Isso
quer dizer que, entre várias possibilidades,
apenas uma era realizada em cada momento, sendo
que o virtual serviria apenas para hierarquizar,
com a sua força germinal, as possibilidades
realizáveis. É partindo desde ponto
que vale, de ora em diante, pensar a diferença
radical de concepção que Henri
Bergson e Gilles Deleuze deram a essa clássica
imagem do virtual. A proposta vem, em parte,
de Scot, de Spinoza, de Nietzsche e de G. Tarde,
por um modo de pensar os ritmos, as linhas de
força não formadas, as velocidades
e as intensidades que ainda nem nome têm
e que talvez nem sejam apenas da ordem dos dinamismos
humanos.
O conceito de
virtual trafegou, desde os gregos Antigos, pelo
pensamento escolástico e pela teologia,
na Idade Média. Depois ele foi abordado
pela filosofia e pela ciência modernas,
especialmente pela física óptica.
Parcialmente reformulado, aqui e ali, ora como
um adjetivo, ora como virtude, ou agora, como
se dá, na condição de um
rótulo oportunista do marketing da
web e do mercado da tecnologia da simulação
digital. Mas foi Henri Bergson, ainda no fim
do século XIX, quem decidiu abraçar,
diferentemente, essa difícil idéia
de virtual. Só que ele o fez a partir
de uma outra entrada conceitual.
O filósofo
tomou o virtual em sua natureza "paradoxal".
Para tanto, ele precisou repensar e questionar
a imagem que lhe dava o pensamento clássico.
Isso porque, sob o princípio negativo
da "contradição" - algo
não pode "ser" e "não-ser",
ao mesmo tempo – jamais encontraremos a
realidade do virtual. Este torna-se, portanto,
a imagem conceitual de uma realidade que passa
a "subsistir", ou a "insistir",
para aquém dos tempos da existência
sensível, da percepção ou
da cognição. Guiado por esta idéia,
ele procurou conceber uma espécie de genealogia
do virtual e do seu par processual, o "atual".
Bergson nos diz que, quando se reduz o virtual
a um simples possível, tal como Aristóteles,
dialeticamente, o desejou, as relações
virtuais/atuais passam a ter uma forma negativa,
de uma polaridade entre espaços vazios4.
Dito de outro modo, o pensamento ocidental, que
até então trabalhava sustentado
no princípio de não-contradição,
passa agora a trabalhar com o princípio
do paradoxo. Isto significa que agora, a partir
de Bergson, o pensamento tem um mundo inteiramente
"problemático", de co-implicações
irrequietas. O virtual é, para Bergson,
a origem não manifesta de tudo, o dinamismo
de tempos absolutos da natureza, imperceptíveis
para nós. Com Bergson, não há
mais dúvidas quanto a isto, mudou-se a
definição conceitual do virtual,
passando-se do "germe aristotélico",
da virtude potencial dialógica, à
multiplicidade processual, paradoxal e criativa
do Tempo5.
O virtual é, para Bergson, a origem não
manifesta de tudo, o fundamento "duracional"
de tempos da natureza, imperceptíveis
para nós. A imagem do virtual
é, desde então, vibrante e imanente,
a realidade do movimento e das velocidades absolutas.
O virtual será, a partir de Bergson, definido
como um evento singular incorporal e subsistente
a tudo aquilo que existe para as nossas lentas
apreensões sensitivas.
Dito de outra
maneira: não há experiência
do virtual como tal, uma vez que ele não
é dado e não tem existência
psicológica. Por natureza, o virtual é
incaptável ao horizonte da realidade vivida.
É que, por natureza, os problemas que
perfazem o virtual escapam à consciência.
Em resumo, a realidade linear e seqüencial
própria da consciência tem como
origem uma singularidade prodigiosamente improvável,
uma coincidência impossível de movimentos
múltiplos, ao mesmo tempo distintos e
semelhantes. Este é o paradoxal devir.
O mundo do virtual é, para ambos os autores,
um universo não abarcável pelo
conceito e que reside nas regiões de existência
fora do contato com o sujeito percipiente. Isto
quer dizer que as virtualidades agem e se encarnam,
no mundo sensível, mas por princípio,
elas são silenciosas, jamais dadas na
experiência psicológica. O virtual
possui, no entanto, uma plena realidade e é
justamente a partir dela que a existência
sensível é produzida. Já
se disse que, ao contrário do que supõe
o pensamento metafísico, transcendental
e dialético, o virtual não é
uma entidade ideal, possível ou ilusória,
por princípio contraposta a uma realidade
"atual". Nesse mundo de forças
informuladas, "incorporais", o virtual,
em sua natureza, é a velocidade de tempos,
imaterial e inexpressa. Ele perfaz a presença,
mas nem por isso é acessível para
nossas sensibilidades. É um imenso domínio
de delicadas diferenças, dessa gestação
criativa de sutis vibrações, ora
empurradas ou retidas, ora comprimidas ou descontraídas,
ora estratificadas ou amalgamadas.
Para o pensamento
de Bergson, a grande dificuldade para se imaginar
o tempo do virtual advém da vetusta representação
que se faz da própria imagem abstrata
da "duração". Porque
o movimento, quando percebido pelos nossos sentidos,
já é também o signo palpável
de uma duração homogênea
e mensurável. Só o pensamento do
virtual pode criar uma imagem da duração
"pura", ou como diria Bergson, da duração
em sua pureza original. A realidade do virtual,
ou do devir, para o autor, é a coexistência
de durações muito diferentes, superiores
e inferiores à nossa, e todas comunicantes.
O que dá espessura representável
à "pura duração",
é a nossa memória. Uma vez "educada",
ela passa a condensar os momentos múltiplos
de duração, em instantes perceptivos.
A concepção
bergsoniana de virtual foi assimilada e burilada
por Deleuze, que se manteve, por sua vez, próxima
aos preceitos de Bergson. A realidade do virtual
supõe, refinado pelo pensar deleuziano,
um plano imenso de linhas de forças que
operam nos mínimos eventos, no infinitesimal,
nos mais ínfimos movimentos da realidade.
O virtual, em seu movimento processual com o
atual, em co-implicações imanentes,
ativa tudo aquilo que perdura o suficiente para
que os nossos sentidos possam captar como formas,
matérias e coisas, enfim, para que possamos
perceber, objetivamente, uma realidade. A virtualidade,
de sua parte, pode ser pensada como um movimento
singular, como a repetição rítmica
de forças diferenciantes, pelas
quais o mundo não pára de se realizar.
Neste momento, vale dizer, o virtual é
a força do tempo do devir, uma combinatória
de encontros de linhas de força que por
si sós não têm forma, nem
significação, que também
não possuem conteúdo nem realidade
empírica, mas que perfazem toda a plenitude
sensível do real6.
O virtual é a força auto-diferenciante
que, em seu movimento repetitivo, põe
em comunicação a simultaneidade,
a contemporaneidade ou a coexistência de
todas as séries divergentes do tempo num
encontro conjunto de amplexos7.
Não é
novidade que, num mundo crescentemente "povoado"
por micromáquinas e, sob esse atual imperativo
da conexão, estejamos a correr riscos
de nos expormos a mecanismos de sujeição,
a produções de subjetividade veladas,
porque muito velozes, sob os ardis da realidade
virtual, movidos pelos poderes empresariais tecnocráticos.
É também sabido que a internet,
a despeito de seu alardeado "descentramento",
não existe alheia às suas estruturas
centralizadas de controle, e ignorá-las
é ignorar a parte dela que a faz funcionar,
ao menos como uma imensa e ubíqua máquina
tecnológica. Em suma, as máquinas
informáticas e telemáticas já
logram operar francamente no ritmo de nossas
percepções e da nossa sensibilidade.
Os onipresentes
meios técnicos digitais produzem, continuamente,
fluxos "multi-informacionais", que
percorrem o ambiente das redes, visando a controlar,
de modo sub-reptício, a reprodução
de nossas subjetividades. E isto se dá
de maneira cada vez mais veloz, intensiva e sutil.
Na maioria do tempo de convívio com as
imagens digitalizadas, nem sequer notamos mais
que os fluxos tecnológicos tornam-se cada
vez mais importantes para o controle dos ritmos
corporais, porque esses fluxos simulam novos
meios de extensão, de virtualização
do próprio corpo. Significa que as elites
tecnocráticas não se contentam
em fornecer a ele grandes braços virtuais
ou um cérebro ampliado: os fluxos que
seus dispositivos técnicos produzem penetram
nosso corpo, modificando-o, já que não
raro alcançam extrapolar as nossas relações
psicomotoras naturais.
A "realidade
do virtual", esta máquina
de devires que urde criativamente os ritmos vitais,
continuamente reabertos pela força inovadora
do futuro, deve ser pensada para muito além
dos ambientes digitalizados. No que diz respeito
às questões da "realidade
virtual", o fato é que se criou,
nestas últimas décadas, pela performance
tecnológica de velocidades sobre-humanas
de fluxos digitalizados e de multilinearidades,
um espaço simulacral de "mediação
imediata". O próprio desktop
em nossa tela ou os videogames hiperrealistas
são alguns dos exemplos mais triviais
da sofisticadíssima produção
técnica de universos imaginários
simulados, cada vez mais convincentes à
nossa lenta percepção. Tal simulação
possui, por um vertiginoso coeficiente de velocidades,
uma eficácia total para iludir, para além
da perfeição, os nossos sentidos
corporais. Não é por acaso que
tudo se joga, em investimentos econômicos,
na tentativa de povoar esse novo espaço
que, na expressão de Bragança de
Miranda, é o ambiente propício
às tecnologias de "controle do imaginário".
Ora, um sistema
penetrante e sutilmente opressivo de controle
pode imprimir ritmos constrangedores sobre os
nossos corpos e sobre a nossa imaginação,
podendo também reordenar os dinamismos
do nosso modus vivendi. A interferência
programada dessa dimensão vital que concerne
à nossa maneira de perceber, de agir,
de sentir, aos nossos regimes de signos habituais,
constrói um perfil compósito das
necessidades de consumo tecnológico e
informacional, nem sempre afinadas com as nossas
aspirações íntimas. Miranda
também apontou corretamente, a emergência
de um sintoma ligado aos usos coletivizados das
máquinas virtuais. Dá-se, para
ele, uma espécie de "alucinação
consensual" que envolve milhões e
milhões de usuários. Afinal, como
argumenta Bragança, os estados em que
perceber, ver imagens ou escutar sons que podem
não existir em nossa realidade "natural",
material, não seria o que chamamos de
alucinações?
É esse
o ambiente que o chamado de "mundo comunicacional
e informático", ostensivamente mapeado
e reproduzido como um único logos, nos
recobre. Obstinadamente realimentados pelas sobrecodificações
hegemônicas, ainda mais agudas na internet,
corremos um perigo de sucumbirmos, em nossa apreensão
da realidade, a meros dualismos sem saída,
sob a égide exclusiva de relações
binárias e de mobilidades pré-coordenáveis.
Existe, obviamente, uma tal opressão tecnológica,
em virtude desses mecanismos de controle binarizante
do saber, dos signos e das imagens, que reduz,
drasticamente, o campo de experimentação
do nosso desejo, confinando-o a uma simples divisão
dualista preestabelecida. O desejo, como potência
livre da vida, parece assim laminado pelas forças
de inibição próprias à
lógica binária da realidade virtual.
Nomes, ritmos, memória e expectativas
vão sendo assim pré-orientadas.
A realidade digitalmente simulada corre, deste
modo, o risco de fazer atrofiar, por assim dizer,
a nossa atividade da imaginação,
por sua natureza, sempre criativa. Igualmente
se fala a respeito de todo o nosso universo de
imagens, responsável por gerar sentido
em nossos mínimos gestos, que já
estariam por demais insuflados por um desejo
subreptício, ingênuo e inconfessável
de atingirmos uma compatibilidade total com o
"tecnocosmos digitalizado". Isso quer
dizer que, na condição de consumidores
das tecnologias multimidiáticas, nos alienamos
do próprio desejo como ele poderia ser:
uma avidez afirmativa da existência. Ao
contrário, continuamos a nos concentrar,
ingenuamente, num objeto e na sua posse. Esse
objeto externo é alheio ao real poder
vital, livre e criativo, como diria Nietzsche,
da nossa "vontade de potência".
As máquinas
técnicas, em suas velocíssimas
performances, se passarem a esquadrinhar o nosso
imaginário, elas poderão interromper
o desejo tal como Deleuze nos propunha: a potência
impessoal de um processo que, antes da imagem
da posse de um dado objeto, seja apenas uma vontade
criativa da vida. Por fim, não experienciamos
a web de modo "rizomático".
Pelo contrário, somos constantemente pré-conduzidos
em nossas escolhas, pelos enclaves tecnocráticos
que convergem seus interesses no "controle
do virtual".
Não se
devem confundir, por fim, a realidade do virtual
e a simulação digitalizada do real.
A primeira não deve ser coincidente, como
vimos, com a chamada "realidade virtual".
Ao contrário do virtual como uma palavra
ou uma imagem do pensamento que diz respeito
aos micro-dinamismos criativos da vida, inorgânica
ou não, o simulacro virtual é uma
invenção tecnológica poderosa
sobre a nossa sensibilidade, que produz uma realidade
perceptiva controlável, em filigranas,
a partir de seus ultra-velozes fluxos digitalizados.
Uma simulação
bem sucedida seria, desse modo, a inibição
mesma do virtual. Este desapareceria do imaginário
criativo e se tornaria em algo regrado, prolongando
o espaço hegemônico da cultura de
imagens estereotipadas. Condicionados pelos chaveamentos
binários da percepção ou
da imaginação induzidos pelo simulacro
digitalizado, não haveria nenhuma chance,
por exemplo, de sairmos de nós mesmos,
de nos "desorientarmos", de nos surpreendermos,
de criarmos, de criarmo-nos, implicados num futuro,
imediato e singular.
A organização
sistêmica implicada nos horizontes tecnocráticos
somente pode sobreviver se investir, massivamente,
nas produções conformadas e nas
codificações "mecânicas",
fechadas e polarizadas da nossa subjetividade.
Tais máquinas tecnológicas, com
seu logos técnico de hiper-realidade
têm produzido fluxos simulacrais que percorrem
a dimensão da imagem que construímos
de nossa suposta subjetividade, de maneiras cada
vez mais ostensivas. Elas alcançaram modos
de controle que se operam nos ritmos mais ínfimos
da subjetividade. Conformam-se, continuamente,
inumeráveis fluxos que passam pela subjetivação.
Podemos exemplificar: há, nos planos coletivos,
fluxos de consumo, fluxos de arte, fluxos científicos,
fluxos de redes de computadores, fluxos opinião
etc. Foucault nos traduz esta idéia, com
perspicácia: "Esses fluxos são
constantemente modulados em função
de uma axiomática, permitindo que potências,
como a da Comunicação, participem
dos processos de subjetivação,
a ponto de ditar-lhes ritmos". (Foucault,
2002, p. 195)8
Daí que esses "fluxos tecnológicos",
tais como Deleuze os nomeia, tornam-se mais e
mais importantes para o controle dos afetos,
porque eles oferecem, com a evolução
dos dispositivos de interface, meios de extensão,
de interferir, em filigranas, nas virtualidades
do corpo.
Em meio a essa
incompreensível miríade de fluxos
existenciais que ora se confrontam, ora atravessam
e transformam, de muitas maneiras, a nossa experiência
coletiva de outra dimensão chamada de
subjetividade, enfrenta-se hoje na internet,
segundo muitas vozes, a instauração
de uma espécie de "coquetel subjetivo",
metáfora que ilustra uma situação
em que cada indivíduo é envolto
por várias subjetividades transversais
coletivas, no cruzamento massivo de inúmeros
vetores, de persistentes mecanismos de subjetivação9.
Segundo a autora Sibilia, as empresas informáticas
e midiáticas se esforçam para lançar
e relançar no mercado novas formas postiças
de subjetividade, estereótipos imaginados
que serão adquiridos e, de imediato, descartadas10.
Para Sibilia, tal prática realmente alimenta
uma espiral de consumo de "modos de ser",
ou seja, de modelos identitários efêmeros,
descartáveis. São chamados, por
Sibilia, de "upgrades subjetivos".
(Sibilia, 2002, p. 33)
Para finalizar:
como se pensar, nos modos possíveis de
"freqüentação" da
internet, uma performance que se aproxime de
uma resistência criativa, ou de uma dissidência
nômade, que pudessem desencaminhar os velozmentecontrolados
regimes da imagem? Essa questão ainda
precisa ser encarada, como uma espécie
de exercício ético na interatividade.
O chamado "webber" tem, aparentemente,
uma miríade de direções,
nas quais ele pode se mover de modo absoluto
e livre. Mas se a web já está traçada
por um logos altamente sobrecodificado e, se
as suas linhas já estão predeterminadas,
cada vez mais distantes da multiplicidade rizomática,
o freqüentador da internet deverá
explorá-la com uma espécie de “idiossincrática
sensibilidade”. Quem sabe se ele não
redesenha seus movimentos, resistindo aos dinamismos
de tempos previamente definidos pela onipresente
máquina simulacral? O "heterônimo
de desktop" que criamos para freqüentar,
por modos impessoais, a rede digital, tem a tarefa
de se exercitar numa coletiva micropolítica
da interatividade. Ao buscar experimentar na
internet - e para além dela - a produção
contínua de uma subjetividade imaginativa,
o personagem interativo inventa uma persona
que se componha como uma máquina existencial
despersonalizada, porém afirmativa de
um apetite mútuo pela preservação
da vida. Tal vontade de potência é
a de nos intensificarmos como personagens-encruzilhada,
catalisando desejos para além da mera
oposição entre objeto e do sujeito,
entre o Eu e o Outrem. Levar em conta a realidade
do virtual em nossas vidas é, por fim,
assumir o paradoxo, a composição
de virtualidades não-humanas e de devires
moduláveis, como uma imagem-ritmo,
como produtores de um imanente ethos
intensivo, singular, múltiplo e criativo.
Notas:
1
Como diria Van Gogh: "...animada não
sei por que comoção íntima..."
(Van Gogh, 2002, p. 60) fervilha sob a nossa
realidade percebida, na espessura de uma matéria
efervescente, radiante, múltipla, inquieta,
marulhosa, espumante, há uma vida, engendrada
por miríades de mudanças ínfimas.
2 Mais de uma
vez temos citado o poeta ao abordarmos a questão
do virtual, justamente por causa de sua persistente
curiosidade a respeito dessa enigmática
força: "A realidade verdadeira de
um objeto é apenas parte dele; o resto
é o pesado tributo que ele paga à
matéria em troca de existir no espaço".
(Pessoa, 1998, p. 481)
3 Tal movimento
de dicotomias moduladas numa série de
outras oposições, em infinita oscilação
pendular. Vale notar que, fundado num modelo
dialético, próprio ao sistema mental
da Grécia Antiga, a idéia de virtual
submetia-se também ao princípio
clássico desse raciocínio dualista.
( grifo nosso )
4 Além
disso, há uma outra metáfora fundamental
ligada à imagem do virtual tecnológico:
a "energia". O virtual não é
um potencial bruto, relativo a fenômenos
energéticos. O virtual não é
da ordem da energia, pois esta, ao contrário
daquele, se “entropiza”.
5 Ou como diz
François Zourabitchvili: "Não
é mais uma oscilação entre
dois pólos, mas a correlação
de duas faces inseparáveis." (Zourabitchvili,
2004, p. 23)
6 Resumindo,
há uma ambigüidade constitutiva do
relacionamento entre atual e virtual, uma vez
que todo objeto é virtual e atual, a um
só tempo. Eles são distintos, mas
indiscerníveis, como duas faces da mesma
imagem. (Levy, 2003, p. 102) Noutras palavras,
são duas dinâmicas inversas e complementares
da existência: a atualização
de formas e a involução –
e não evolução - que destina
o mundo a redistribuições incessantes.
(Zourabitchvili, 2004, p. 31)
7 Esse maquinismo
de devires heterogêneos, com velocidades
singulares e imprevistas, faz oscilar um paradoxal
jogo de interfaces, entre o virtual e o atual.
Bergson e Deleuze recriaram o virtual como um
conceito para que pensemos não o mundo
da matéria formada, mas sim o da diferenciação
imanente que se faz mundo. Esse mundo das intensidades
e das suas durações revela um mundo
vital não-sensível e ainda sem
nome que, num processo complexo de dinamismos,
se tornam ato, se atualizam em nossa realidade
humana dos sentidos e da linguagem. ( grifo nosso
)
8 Entre os
vários modos de explorar as ocasiões
de encontro na internet, situações
engendradas pelas grandes potências empresariais,
um deles é o de espreitar, sistematicamente,
todos os nossos contatos na rede. Um bom exemplo
é o dispositivo de comunidades "virtuais",
concebidas no mínimo para saber se esses
encontros e reencontros podem render, em algum
momento, certo lucro.
9 Estabelecerem
relações sem estarem limitados
pela proximidade e pelos marcadores de aparência,
aproveitando todo o potencial de liberdade contido
na máscara e no anonimato. (Vaz, 2002,
p. 45)
10
Podemos aqui incluir o recurso dos avatares,
nicknames, usernames etc. que
são os pseudônimos da internet.
( grifo nosso )
Referencias:
Bergson,
H. (1999) Matéria e Memória:
ensaio sobre a relação do corpo
com o espírito. São Paulo:
Martins Fontes.
Bragança, M. (1996) O Controlo do
Virtual. Lisboa: Ed. Univ. Nova de Lisboa.
Deleuze, G. (1988) Diferença e Repetição.
Rio de Janeiro: Graal.
Fink, E. (1983) A Filosofia de Nietzsche.
Lisboa: Editorial Presença.
Levy, T. S. (2003) A Experiência do
For a: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio
de Janeiro: Relume Dumará.
Pessoa, F. (1999) Livro do Desassossego.
São Paulo: Cia das Letras.
Tarde, G. (2003) Monadologia e Sociedade.
Petrópolis: Vozes.
Ms.
Rodrigo Fonseca e Rodrigues
Professor de Teoria e Métodos de Pesquisa
em Comunicação (FCH/FUMEC
– BH) e de Estética e Sociologia
da Informação (FES-BH),
Brasil. |